Consciência Negra: a Lei 14.532/2023 e o crime de racismo no Brasil

O racismo é um sistema de ideias, um conjunto de percepções estruturado, que passa a ideia de que existem grupos raciais, povos ou culturas superiores às outras. No caso do Brasil, o racismo atravessa gerações estruturando-se na ideia de que as pessoas negras são inferiores em relação aos brancos, seja em âmbito familiar, profissional, econômico e jurídico.

Conforme explana o professor Silvio Almeida, “o racismo é estrutural”.  Profundamente enraizado na cultura brasileira, a estruturação do racismo afeta a psique humana moldando-a para um distanciamento de que somos todos iguais, valorizando a cultura branca e inferiorizando os negros. 

Ainda com o professor Silvio Almeida, o racismo não é uma patologia ou desarranjo social, mas sim estrutural, no sentido de que o aspecto histórico-cultural do Brasil, ainda que com uma população negra estimada em 56% (dados do IBGE 2022), é de inferiorização dos negros, que transcende para um aspecto sociocultural.  

Para que entendamos o segundo aspecto precisamos fazer uma breve volta ao passado, na qual os negros eram escravizados e vendidos como mercadoria, sem quaisquer direitos muito menos humanidade. Com a promulgação da Carta de Alforria o direito à liberdade era basicamente um documento a ser exposto ao mundo (que já havia abolido a escravidão) ao invés de ser um direito legítimo para cada cidadão. Isto significa que muito embora formalmente a escravidão estivesse abolida, materialmente ela estava enraizada na estrutura social e não houve políticas efetivas para a mudança desta estrutura. 

Dessa forma, muitos que haviam sido escravizados continuaram nesta condição pois não tinham para onde ir e tampouco possuíam condições socioeconômicas para exercerem atividades produtivas. Outros, ainda antes da abolição, já se organizavam em quilombos, resistindo as perseguições e lutando pela liberdade. 

Paralelamente a esta situação, em um contexto de pós-guerra- mundial juntamente com a expansão agrícola e industrial que se iniciava no Brasil, houve a o incentivo de imigração por meio da concessão de terras em nosso país, algumas delas praticamente dadas pelo governo, o que atraiu os olhos de muitos estrangeiros, dentre eles alemães e principalmente italianos. 

Tal política pode ser interpretada por dois vieses: o primeiro, costumeiramente abordado, porém como pano de fundo, remete ao fato de que foram facilitadas a venda de terras para estrangeiros a fim de promover o Brasil, que sequer tinha nomenclatura de país-emergente nesta época. O outro, e mais reflexivo, nos remete ao fato de que a intenção política dos governantes, era a tentativa de branqueamento da população, com intuito de apagar a própria história do país e o passado escravocrata.

O Brasil é um país miscigenado. Diferentes culturas e diferentes tons de pele, construíram o nosso país de hoje em dia. Ainda assim, parece ser mais “agradável” mencionar que seus antepassados vieram da Europa do que dizer que se tem um pouco de sangue negro correndo nas veias. É um tipo subjetivo de “status social-racial” que pode passar despercebido pelas pessoas.

Todavia, quando falamos em diversidade no âmbito profissional, por exemplo, diante de uma pesquisa realizada nas 500 maiores empresas do Brasil, apenas 4,7% de negros ocupam cargos no quadro executivo e 4,9% de negros ocupam cargo no conselho da administração e 85,5% das 500 maiores empresas do Brasil não possuem nenhum tipo de medida para incentivar e ampliar a presença de negros (Instituto Ethos, 2016). Por outro lado, 47,6% da população negra está inserida no mercado de trabalho ocupando níveis operacionais (Vagas.com, 2020).

As perguntas que fazemos ao olhar esses números são “onde estão as pessoas pretas quando falamos em cargos de liderança? Por que se encara o negro como impróprio para ser referência em determinado cargo ou função?”

A disparidade atual remete à uma série de fatores que bloqueiam a equiparação do negro ao branco, passando pelo aspecto histórico, pela falta de oportunidades, pela falta de interesse dos grandes empresários em evoluir na esfera étnico-racial e, principalmente, pela falta de políticas públicas que integrem a população negra em cada vez mais nos aspectos sociais, econômicos, educacionais e políticos. 

É crucial que a população branca reconheça seu histórico de privilégio na estrutura de poder, construído sobre o colonialismo e a escravidão, e compreenda a importância de políticas de inclusão, valorização e respeito.

As pessoas brancas precisam entender que sempre estiveram em posição de privilégio na hierarquia de poder da sociedade; precisam entender que este foi o grupo responsável por estruturar os desníveis raciais a partir do colonialismo e da escravização e perpetuar suas narrativas como hegemônicas” (Manual Antirracista NW, 2023).

A promulgação da Constituição de 88, uma das mais bem elaboradas do mundo e que serve de estudo por outros países, trás como direito e garantia fundamental no artigo 5º que “todos são iguais perante a lei”. Contudo, foi mais fácil dizer que todos são iguais perante a lei do que promover políticas públicas para às mulheres e para a população negra com intuito de, desde aquela época, combater a discriminação e inferiorização racial.

Foram necessários muitos anos e intensa atuação do movimento negro brasileiro para que discussões acercas da tipificação do racismo como crime fossem encaminhadas. Neste processo, a luta antirracista no Brasil culminou na recente Lei do Crime Racial 14.532/2023, que tipifica a injúria racial como uma modalidade de racismo. Essa lei, inafiançável e imprescritível, estabelece penas de reclusão de dois a cinco anos, com aumento em caso de participação de duas ou mais pessoas. Além disso, aborda o racismo esportivo, recreativo e religioso, representando um avanço significativo.

A alteração na Lei do Crime Racial também simplifica o processo de investigação, não exigindo mais que a vítima aceite o início das investigações. Com essa mudança, o inquérito policial é iniciado assim que a autoridade registra o fato.

Além das mudanças significativas na Lei do Crime Racial (Lei 14.532/2023), é importante destacar o que uma pessoa pode fazer caso seja vítima de racismo.

Se você for vítima de racismo, é fundamental estar ciente dos seus direitos e das medidas que podem ser tomadas para buscar justiça. A Lei do Crime Racial estabelece que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, sujeito a penas de reclusão de dois a cinco anos, com a possibilidade de aumento se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.

Diante de um episódio de racismo, é aconselhável seguir alguns passos:

  • Registro da Ocorrência: Procure imediatamente uma delegacia de polícia para registrar a ocorrência. Com a alteração na Lei do Crime Racial, não é mais necessário que a vítima aceite o início da investigação; o inquérito policial será iniciado assim que a autoridade policial registrar o fato.
  • Coleta de Provas: Documente todas as provas disponíveis, como mensagens, vídeos, fotos ou testemunhas. Esses elementos podem fortalecer a sua posição durante o processo de investigação.
  • Denúncia ao Ministério Público: Além de registrar a ocorrência na delegacia, é possível formalizar a denúncia junto ao Ministério Público. O Ministério Público é responsável por promover a ação penal pública, e a denúncia pode contribuir para o processo judicial.
  • Assistência Jurídica: Busque a assistência de um advogado especializado em direitos humanos e questões raciais. Um profissional qualificado pode orientar sobre os próximos passos e representar seus interesses legalmente.
  • Redes de Apoio: Procure organizações e redes de apoio que lidam com questões raciais. Elas podem oferecer suporte emocional, orientação jurídica adicional e recursos para enfrentar o impacto do racismo.
  • Denúncia em Órgãos Específicos: Em alguns casos, é possível denunciar o racismo em órgãos específicos, como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) ou o Disque 100, que recebem denúncias de violações aos direitos humanos.
  • Conscientização e Mobilização: Compartilhe sua experiência, se sentir confortável, para conscientizar a sociedade sobre a persistência do racismo. A mobilização social é fundamental para pressionar por mudanças estruturais e políticas antirracistas.

Esses passos visam não apenas buscar justiça individual, mas também contribuir para a conscientização coletiva e o combate sistemático ao racismo, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.

Por fim, é fácil perceber que o racismo e suas consequências ainda estão presentes nas relações socioeconômicas de nosso país.  Ainda há muito para alcançarmos a equidade racial plena. Para tanto é de grande importância a conscientização de que o combate ao racismo não é exclusivo dos negros e sim de todos na execução de um diálogo construtivo capaz de construir uma sociedade mais justa e igualitária. 

Ouça o episódio na íntegra.