Publicado por Marina Dayrell, no Estadão em 07 de setembro de 2020
O silêncio acabou. Com a proposta de promover a escuta ativa das mulheres vítimas de assédio sexual, seja no mercado de trabalho, em casa ou em qualquer ambiente, nasceu na última semana o projeto #MeTooBrasil – que leva como slogan a frase que abre esta reportagem. A iniciativa foi inspirada no movimento norte-americano criado a partir das denúncias de abusos ocorridos em Hollywood, em especial os praticados pelo produtor Harvey Weinstein.
No Brasil, o movimento foi idealizado pela advogada Marina Ganzarolli, que há 13 anos atua no acolhimento de mulheres e LGBTs vítimas de violência, em parceria com outras advogadas e com o Projeto Justiceiras – desenvolvido pela promotora de Justiça Gabriela Mansur durante a pandemia para apoiar mulheres vítimas de violência doméstica.
Pelo site do movimento, é possível registrar denúncias de assédio sexual sofridos pela própria denunciante ou por alguém que se conheça. Também há opção para as mulheres que ainda não estejam preparadas para denunciar e apenas queira compartilhar suas histórias de forma anônima. Após os registros, a iniciativa oferece apoio jurídico, psicológico e socioassistencial para as denunciantes.
“Recebemos denúncias de todos os tipos, mas a gente tem um foco precisamente nesse tipo de assédio sexual que se usa do poder econômico, da hierarquia, da influência, do poder e da admiração para ameaçar a vítima e silenciá-la. Coisas que são muito características do assédio no mercado de trabalho“, relata Marina Ganzarolli.
Segundo ela, há situações em que o momento de trabalho e lazer se confundem, em que os profissionais viajam juntos, todo mundo junto em um hotel. “As pessoas acabam confundindo os limites e tendo condutas inadequadas. Sempre se usando da hierarquia, dos vieses combinados com a dinâmica de poder entre funcionários, chefes, superior e inferior e, mesmo em um mesmo nível, na desigualdade entre homens e mulheres no escritório.”
Confira a seguir a entrevista com a advogada.
O que inspirou a criação do movimento?
Eu atendo vítimas sobreviventes de violência sexual há 13 anos e nesse tempo muitas vezes recebi denúncias coletivas. No Brasil, a gente avançou no debate de violência doméstica desde 2006, com a Lei Maria da Penha, isso mudou muito em termos de percepção da sociedade, as pessoas já entendem que é problema de saúde pública, que é diferente de outras condutas criminosas. Mas a violência sexual fica sempre em segundo plano. Ainda temos uma estimativa de que nem 7% dos casos chegam às autoridades. Ainda não conseguimos alcançar um nível de debate na esfera pública em que haja uma compreensão da importância do enfrentamento desse crime. Ele carrega estigma, desconfiança por parte das sobreviventes em relação ao sistema de Justiça, porta de entrada de denúncia não se mostra preparada para recebê-la.
Na época do Me Too nos Estados Unidos, o Brasil foi um dos países que mais teve impressões em termos de hashtag, mas não pegou. No começo do ano, quando chegaram para a gente as denúncias contra o Gustavo Beck [produtor de cinema que foi acusado por 18 mulheres, em reportagem do ‘The Intercept’, de assédio sexual], vimos que era a oportunidade para levantar a bola e voltar a falar sobre isso em parceria com o projeto Justiceiras. Não queríamos trazer só hashtag, mas algo que ficasse, trazer uma experiência que foi bem sucedida nos Estados Unidos e permaneceu. Criar um instrumento que some às iniciativas já existentes porque não estamos inventando a roda. E algo que vemos que os Estados Unidos faz muito bem é a capacidade de ver uma lacuna na atuação do poder público, um lugar em que ele não consegue fazer uma ponte com a sociedade e atura.
Qual a diferença entre ir à delegacia e fazer uma denúncia no Me Too Brasil?
As vítimas de violência sexual não vão à delegacia, quando vão ao hospital já é muito. É um problema do poder público, mas não significa que a sociedade civil não possa se unir pra ajudar a disseminá-lo. Então queremos criar um espaço de interlocução entre vítimas e autoridades, sem a delegacia, com acolhimento qualificado, escuta qualificada. A nossa ideia é a centralização da vítima. A ideia da polícia é prender o agressor, punir, e isso é um aspecto da reparação, mas há outro aspecto mais importante, de pouco interesse da justiça criminal, que é a proteção e recuperação da vítima; A criação de condições para que ela saia da situação de vítima e prospere. Como ela volta à sua vida e sobrevive a partir desse episódio? Essa é a nossa preocupação.
A que tipo de serviço a mulher tem acesso na plataforma?
Claro que eu quero que todas as mulheres denunciem e que busquem a justiça criminal para que a gente possa mudar a resposta do judiciário para esse tipo de crime, mas o nosso objetivo é garantir que a vítima esteja no centro da denúncia. Se quiser só desabafar e contar a sua história de forma anônima, ela pode. Se ela quiser contar a sua história, mas precisar de apoio psicológico, socioassistencial e jurídico, também temos essa opção. E se quiser denunciar, mandar para o Ministério Público Federal, se a pessoa já estiver nessa fase e quiser o apoio de advogadas e promotoras porque, às vezes, o cara é o bambambam da área que ela trabalha, por exemplo, também temos essa opção.
Quem dá o caminhar e até onde a gente vai é a própria vítima. E isso é muito importante porque muitas vezes a gente cai no discurso de que é importante denunciar e que a mulher não está sozinha. mas na prática, enquanto advogadas, a gente sabe que não funciona necessariamente assim. Tem gente nas delegacias e ministério das mulheres fazendo um trabalho incrível, mas infelizmente ainda há muitos problemas. Então o nosso papel é fazer a interlocução com as autoridades de forma que se garanta a escuta dessas mulheres e os depoimentos não se percam. Em vez de falar “você tem, você deve fazer isso”, a gente fala o “você pode, quando você quiser e, se você quiser, a gente vai estar aqui para te acompanhar nesse processo”.
É possível fazer denúncias de situações de agressão sexual que não ocorreram com você?
Desde 2018, com a Lei da Importunação, o Ministério Público é obrigado a apurar os fatos quando recebe uma notificação de crime de violência sexual. Ele não precisa da representação formal da vítima. Denunciar por outra pessoa pode ocorrer em várias situações, mas no geral cabe quando temos uma criança ou adolescente envolvida ou no caso de uma mulher adulta que não esteja pronta para denunciar. Nesse caso, a gente pode juntamente com a pessoa que denunciou, verificar a possibilidade de encontrar outras provas que não o depoimento da vítima.
Imagina uma situação na qual você sabe que um homem agrediu uma mulher sexualmente e você trabalha com essa pessoa. A gente pode fazer o acompanhamento para tentar achar outras pessoas que possam falar também, outras vítimas que queiram falar. Não é porque a vítima não quer falar que não é pra denunciar, ainda que a mulher não consiga romper o ciclo. Denunciar por outra pessoa é uma opção importante para que a gente garanta a denúncia. Infelizmente, ainda temos a ideia de que o predador sexual é um cara que sai de uma van, anda de boné, óculos escuro, meio sombrio, uma ideia de monstro e isso é um problema. Porque ele é seu colega de trabalho, o seu chefe, o seu vizinho, um pai de família respeitado que vai na sua igreja toda semana, que é um amorzinho de pessoa, que é educado com todo mundo.
O assédio sexual no ambiente de trabalho também é contemplado pelo projeto? Quais as situações mais comuns nesse caso?
O Me Too Brasil em si tem uma característica doméstica, mas ele também tem um foco no mercado de trabalho. Recebemos denúncias de todos os tipos, mas a gente tem um foco precisamente nesse tipo de assédio sexual que se usa do poder econômico, da hierarquia, da influência, do poder e da admiração para ameaçar a vítima e silenciá-la. Coisas que são muito características do assédio no mercado de trabalho.
Temos situações, por exemplo, em que o momento de trabalho e lazer se confundem, em que as pessoas viajam juntas, com deslocamentos da equipe, situações de todo mundo junto em um hotel. As pessoas acabam confundindo os limites entre o que é profissional e pessoal e tendo condutas inadequadas que são muito do mercado de trabalho. Sempre se usando da hierarquia, dos vieses combinados com a dinâmica de poder entre funcionários, chefes, superior e inferior e, mesmo em um mesmo nível, na desigualdade entre homens e mulheres no escritório.
Uma conduta inadequada reiterada e de longa data pode causar um trauma muito grande. Eu posso concordar que um colega me cumprimente com um beijo no rosto, mas se ele der um beijo longo, molhado, agarrar a minha cintura, outras coisas assim, não. Quando falamos de assédio sexual no ambiente de trabalho temos que ver que nem tudo é estupro, mas tem outras situações. Muitas condutas não são físicas e isso é algo que precisamos estar atentos principalmente para criar outra cultura no ambiente de trabalho.
Como as empresas podem criar essa cultura contra o assédio sexual?
O desenvolvimento de uma cultura não se dá só em uma resposta eficaz às denúncias, mas também com a conscientização da chefia. É algo de cima para baixo, tem que começar nas lideranças das empresas. A primeira coisa é uma preparação sobre assédio sexual no ambiente de trabalho ter políticas de compliance que abarquem questões de gênero.
A atuação das empresas não começa com resposta a assédio, mas com conscientização, com empresa diversa, com mais mulheres em cargos de poder porque esse é um olhar que, infelizmente, vai partir dos grupos que são afetados e minorizados. É importante e essencial que tenhamos aliados nessa jornada, como os homens nesse caso. Sem eles não avançamos na pauta, mas é importante que tenhamos diversidade nos cargos de poder para ter diversidade de visões e perspectivas sobre os mesmos problemas.