O papel da democracia e da Constituição Cidadã para alcançarmos a Cultura da Legalidade

Antes de iniciarmos sobre o tema em comento urge conceituarmos a expressão cultura de legalidade. A palavra cultura, tem conceito que pode ser entendido de diversas formas, não havendo uma unanimidade quanto a isso. A principal maneira costuma referir-se ao enredo construído no âmbito social definido como um conjunto de hábitos, crenças, ritos, usos, tradições e discursos partilhados pelos membros de uma comunidade que transfere esses conhecimentos através da comunicação escrita ou simplesmente por imitação, repassada às gerações futuras que inevitavelmente inserem sua contribuição cultural de acordo com o momento em que a vivência[1].

A legalidade, por outro lado, é a propriedade do que é legal, isto é, daquilo que obedece à lei e que está de acordo com a legislação sistematizada, codificada ou simplesmente legislações esparsas em vigor. Se elevada a princípio, se apresenta como basilar e limitador das ações do poder público e regulador das interações sociais[2].

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) foi chamada de Constituição Cidadã pelo deputado Ulysses Guimarães no ato da sua promulgação em 05 de outubro de 1988 e, buscava retomar o caminho da democracia e da cidadania no país, garantindo direitos sociais e políticos aos brasileiros. A educação, a saúde, a liberdade política e de comunicação, as eleições diretas para todos os cargos, entre outros direitos hoje básicos e indispensáveis para a sociedade também foram enfatizados na Carta Magna[3].

Quando se fala sobre a cultura da legalidade, a primeira impressão é a de que se refere simplesmente ao princípio constitucional da legalidade, esculpido no Inciso II, do Art. 5º e Art. 37 da CRFB de 1988[4], em que as pessoas têm uma concepção relativa no que tange a lei e aos organismos encarregados de executá-las, o dever de obedecer, sob pena de incidirem em um ato de ilegalidade, afinal, se vive um Estado regido por leis.

A constituição tem um papel fundamental na construção das culturas da legalidade, quando se observa que foi a responsável pela positivação desse princípio. Importa menciona que desde a Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179, inciso I, já determinava que “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de Lei”, consagrando, desde esta época, tal princípio.

Partindo deste entendimento, os governos militares se apropriaram do supracitado princípio para desenvolver uma cultura legal em que o império da lei interferia excessivamente no direito e nas relações sociais. “A ditadura deixou como sua marca indelével a violação dos direitos civis. A expressão ‘para que nunca mais se repita’ tornou-se, e permanece, um guia para os trabalhos relativos à educação em/para direitos humanos”, explica Roseli Fischmann [5], professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), sobre a ditadura no Brasil, que utilizava a Constituição Brasileira de 1967, que é considerada a mais autoritária, para respaldar suas atuações. Entre suas medidas, estabelecia a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, a censura da imprensa e o poder absoluto para que o presidente pudesse fechar o Congresso Nacional. Em que pese essas medidas atualmente serem consideradas absurdas, se apresentavam legitimadas à época, se observado por uma ótica estritamente da cultura legal.

Para além disso, A constituição Cidadã deixa de beber na fonte da tradição jurídica do civil law, sistema francês dos séculos XVIII e XIX em que os juízes não podiam interpretá-la. Por isso, neste período, os magistrados ficaram conhecidos como “juízes boca-da-lei” (do francês bouche de la loi), passando a apresenta um sistema que mistura participação social, ativismo político e judiciário além de altas doses de repressão legal, para criar um conceito cultural tipicamente brasileiro.

Esse conceito que é inspirado na teoria de Lawrence Friedman (1975, 1998), entende ser a “cultura legal” um conjunto variado de expressões, compreensões e usos da lei e do direito no sentido mais amplo, os quais são particularizados pelas sociedades e dentro delas pelos diversos grupos sociais[6]. Ou seja, essa cultura legal passa a sofrer influência das interações e determinações recíprocas entre as relações sociais e o direito, para elaboração das leis, e não mais o oposto, onde a legislação influencia o direito e as relações sociais.

A cultura da legalidade deve desenvolver-se sobre princípios sólidos e que sejam aceitáveis para a população, pois são elaboradas mediante essas relações sociais e o direito. Portanto, a lei é igual para todos os membros da sociedade e seus diversos grupos sociais: os seus mandatos, as suas obrigações e as suas restrições devem ser respeitados por todos os cidadãos, independentemente da sua condição social ou econômica. No entanto, isso não costuma acontecer.

Por outro lado, numa visão social simplória, em alguns momentos as leis podem ser consideradas injustas, havendo por vezes advertências quanto ao seu cumprimento, não ocorrendo de maneira equitativa, sendo por várias vezes violadas, imaginando-se não haver consequências, o que acaba por acarretar um fenômeno conhecido como “Leis que pegam e Leis que não pegam”, onde pensa-se que o respeito pela legalidade não é algo tão importante para o funcionamento da sociedade, gerando um importante obstáculo para a efetividade da cultura da legalidade.
Não bastasse o até agora alegado, ainda se tem a má elaboração das leis, que se mostram extremamente deficitárias e que, pelo decurso do tempo, não acompanharam a evolução da sociedade e necessitam de uma nova interpretação jurídica para sua aplicação de forma clara e eficaz, sendo, portanto, mais um obstáculo que necessitava ser superado pela Constituição Cidadã.

Em virtude de tal problemática, a Carta Magna quando instituiu o Supremo Tribunal Federal (STF) como o guardião da CRFB/1988, que tem por atribuição dar a última palavra em matéria de interpretação dos princípios e regras estabelecidos em comandos supralegais e infralegais, cria um mecanismo para fortalecer essa nova cultura da legalidade. Pode-se utilizar como exemplo o parágrafo 3º do artigo 226 da CRFB/1988, que fala sobre a união estável, se tomada como base a utilização da cultura da legalidade em sua forma estrita anterior ao que preceitua a CFRB de 1988, não caberia a interpretação utilizada atualmente estendendo a aplicabilidade do referido artigo aos casais homoafetivos, o que foi um avanço imensurável para a sociedade.
A Suprema Corte ao apreciar o referido artigo da lei entendeu que pode haver uma interpretação extensiva do comando legal constitucional, in verbs:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) §3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.”

Em maio de 2011, o Plenário do STF, de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.[7]

A decisão do Supremo Tribunal Federal foi um exemplo de como a Constituição Cidadã pode impulsionar a cultura da legalidade. Por meio de uma interpretação ampla e abrangente do artigo mencionado acima, o tribunal estabeleceu um fundamento crucial para salvaguar os direitos humanos e garantir a igualdade perante a lei.

Nesse sentido, dispomos também, a importância do papel da democracia na busca pela cultura da legalidade, com uma atuação importante na construção de uma sociedade justa e igualitária. Pois trata-se de um sistema político baseado na participação popular, cuja importância é reconhecida no artigo 6º da Declaração de Direitos da Virgínia (1776)[8], Artigo 6º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)[9], Artigo 21, parágrafo 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)[10], nos seguintes termos: “Toda pessoa tem direito de participar no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.”

Tendo a democracia como um pilar inicial, no qual assegura aos cidadãos o direito de participar nas decisões que afetam suas vidas e na escolha de seus representantes, é possível a busca pela equidade social e pela prevenção de abusos de poder. A democracia desempenha um papel crucial na promoção de igualdade de direitos, oportunidades e justiça, ao mesmo tempo em que protege os indivíduos de arbitrariedades e violações dos direitos fundamentais.

A doutrina democrática assenta nos princípios fundamentais da igualdade, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e proteção dos direitos individuais e coletivos[11]. Numa democracia, as leis são feitas legalmente, representando a vontade da sociedade e limitando o exercício do poder. Através de eleições e participação popular os cidadãos têm o direito e o dever de influenciar nas políticas públicas, buscando a criação de um ambiente mais justo e igualitário. O engajamento cívico não só monitora o cumprimento das leis, como também fortalece uma cultura de legitimidade ao possibilitar que os indivíduos contribuam ativamente na criação e implementação das mesmas. A deliberação democrática incentiva a transparência, a diversidade de pontos de vista e a busca de consenso, reforçando a legitimidade e o cumprimento voluntário das leis.

Por sua vez, o Estado de Direito é um princípio fundamental da democracia. Significa que todas as pessoas estão sujeitas à lei, independentemente de seu status social, poder econômico ou influência política. O estado de direito garante previsibilidade, segurança jurídica e igualdade de tratamento nos tribunais. Num contexto democrático, a legitimidade é um pilar integrante do bom funcionamento das instituições e da proteção dos direitos dos cidadãos.[12]

A importância da democracia sobre a legalidade pode ser vista na decisão ADO 26 sobre a criminalização da homofobia e transfobia[13]. Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a omissão do Congresso Nacional em legislar para criminalizar a homofobia e a transfobia. O fato destaca a importância da democracia judicial na medida em que o STF corrige omissões legislativas e garante a proteção dos direitos da comunidade LGBT+. A decisão equiparou homofobia e transfobia a crimes racistas, fortalecendo a cultura jurídica e o combate à discriminação. O caso destaca o papel do STF como guardião da Constituição e a relevância da democracia na promoção da igualdade e proteção dos direitos fundamentais.

Nesse sentido podemos ver que a democracia e a Constituição Cidadã desemprenham um papel primordial para alcançar a cultura da legalidade. A Constituição estabelece princípios e direitos fundamentais que devem ser respeitados por todos os cidadãos, e o Supremo Tribunal Federal atua como guardião desses princípios, fortalecendo a cultura jurídica e a igualdade perante a lei.

A democracia, por sua vez, permite a participação popular nas decisões que afetam a sociedade, assegurando a equidade social e a prevenção de abusos de poder. Através do engajamento cívico, a sociedade participa ativamente na criação e elaboração de leis, distribuindo o poder político, incentivando a busca pelo consenso e fortalecendo a cultura da legitimidade, promovendo o cumprimento voluntário das leis.

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[1] Equipe editorial de Conceito.de. (27 de novembro de 2014). Cultura de legalidade – O que é, conceito e definição. Conceito.de. https://conceito.de/cultura-de-legalidade
[2] Equipe editorial de Conceito.de. (27 de novembro de 2014). Cultura de legalidade – O que é, conceito e definição. Conceito.de. https://conceito.de/cultura-de-legalidade
[3] Ciência e Cultura versão impressa ISSN 0009-6725, Cienc. Cult. vol.70 no.4 São Paulo out./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000400004
[4] Site Planalto consulta em 25/06/2023; Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[5] Ciência e Cultura versão impressa ISSN 0009-6725, Cienc. Cult. vol.70 no.4 São Paulo out./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000400004
[6] REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO. 6(2) | P. 371-398 | JUL-DEZ 2010, por Marcelo Pereira de Mello e Delton R. Soares Meirelles
[7] Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Acessado em 27/06/2023, Link: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=504856&ori=1#:~:text=Em%20maio%20de%202011%2C%20o,homoafetiva%20como%20um%20n%C3%BAcleo%20familiar.
[8] A Declaração de Direitos de Virgínia Acessado em 27/06/2023, Link: https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/ilp/anexos/1788/YY2014MM11DD18HH14MM7SS42-Declara__o%20da%20Virginia.pdf
[9] A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 26 de agosto de 1789 Acessado em 27/06/2023, Link: http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/Normas_Direitos_Humanos/DECLARA%C3%87%C3%83O%20DE%20DIREITOS%20DO%20HOMEM%20E%20DO%20CIDAD%C3%83O%20-%201789%20-%20PORTUGU%C3%8AS.pdf
[10] Artigo 21°: Toda a pessoa tem o direito à participação democrática, acessado em 27/06/2023, Link: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/novembro/artigo-21deg-toda-a-pessoa-tem-o-direito-a-participacao-democratica#:~:text=Artigo%2021%C2%B0%3A%20Toda%20a,Direitos%20Humanos%20e%20da%20Cidadania
[11] Estado Democrático de Direito – Superação do Estado Liberal e do Estado Social. Acessado em 27/06/2023, Link: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2018/estado-democratico-de-direito-superacao-do-estado-liberal-e-do-estado-social-juiza-oriana-piske
[12] Direitos Fundamentais: Cerne do Estado Democrático de Direito – Juíza Oriana Piske , acessado em 27/06/2023, Link: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2008/direitos-fundamentais-cerne-do-estado-democratico-de-direito-juiza-oriana-piske
[13] Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733. Acessado em 29/06/2023, Link: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=403183