Juventudes e transformação social: três barreiras à cidadania ativa e como superá-las por meio da educação cidadã

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Autora: Clara Gomes Freitas

Se você foi jovem nos anos 2000, talvez tenha cantado, ou ao menos ouvido, os versos de Não é Sério, de Charlie Brown Jr. e Negra Li. A música, lançada há 25 anos, dizia: “vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério” e “o jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Duas décadas depois, a verdade desses versos segue atravessando gerações e espelhando, com precisão incômoda, a realidade das juventudes brasileiras. Se existisse uma playlist das lutas e desafios das juventudes, essa faixa certamente estaria no Top 10 até hoje.

O Brasil vive o que o Atlas das Juventudes (2021) identifica como a maior geração de jovens de sua história. Mas, apesar dessa força numérica e do potencial transformador, milhões ainda se deparam com obstáculos que atravessam décadas: falam, mas não são ouvidos; sonham, mas não encontram espaço para agir; querem agir, mas não sabem por onde começar. O caminho para propor soluções e impulsionar mudanças, individuais e coletivas, segue estreito quando três barreiras insistem em permanecer:

  1. Desconhecimento sobre os nossos direitos e sobre o funcionamento da democracia: quando não se conhecem as regras do jogo, torna-se difícil identificar injustiças, reivindicar mudanças e fazer valer, na prática, o que está garantido na lei;
  2. Desconfiança no amanhã: a sensação de que nada vai mudar paralisa sonhos e ações;
  3. Olhares que diminuem: estereótipos que reduzem as juventudes à inexperiência ou as tratam como um “problema a ser resolvido” enfraquecem seu protagonismo e limitam seu poder de transformação.

A soma desses fatores constrói um cenário preocupante: 71% dos jovens brasileiros não exercem nenhuma forma de participação social (Fundação SM, 2021) e, segundo o UNICEF (2018), mais de 50% não têm garantido pelo menos um direito fundamental, como acesso à educação.

Meu convite, neste texto, é para que possamos compreender cada “tijolo” que forma essa barreira que afasta as juventudes brasileiras dos seus direitos e de conseguirem exercer sua cidadania de forma ativa — entender seu peso, suas origens e como ela se mantém. Porque só assim, com um diagnóstico claro e compromisso coletivo, poderemos traçar caminhos e estratégias para derrubá-la e abrir passagem para uma geração que conheça, defenda e exerça plenamente seus direitos.

O desconhecimento sobre direitos afasta os jovens de exercerem sua cidadania

Para defender um direito, é preciso antes conhecê-lo. Essa é uma das barreiras mais profundas que as juventudes brasileiras enfrentam hoje: a desinformação sobre cidadania e Direitos Humanos. Embora a Constituição Federal de 1988 assegure garantias fundamentais como educação, saúde, trabalho digno e moradia, a realidade mostra que milhões de brasileiros ainda não têm acesso pleno a esses direitos, e, pior, muitas vezes sequer sabem que eles existem.

Os números evidenciam essa lacuna: em 2018, o IBGE apontou que 65% da população não possuía ao menos um direito básico garantido; em 2024, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou mais de 657 mil denúncias de violações. A falta de informação não é apenas consequência desse cenário, ela o aprofunda. Apenas 7% dos brasileiros afirmam ter conhecimento aprofundado sobre Direitos Humanos (ONU Mulheres e Instituto Ipsos, 2022) e quase metade da população conhece pouco ou nada sobre a Constituição Federal (DataSenado, 2013).

Nos territórios mais vulneráveis, onde o acesso à justiça e à participação social já é historicamente limitado, a desinformação atua como um bloqueio silencioso: enfraquece a capacidade de reivindicar políticas públicas, reduz a presença juvenil em espaços de decisão e perpetua desigualdades. Para as juventudes, isso significa menos autonomia, menos protagonismo e menos possibilidade de transformar sua realidade.

Sem conhecer os princípios democráticos que regem o país e as leis que os protegem, torna-se quase impossível exercer plenamente a cidadania.

Juventudes e a falta de confiança no amanhã, o impacto na participação cidadã

Sentir-se “encurralado pelo cotidiano” não é apenas uma questão individual, mas uma barreira estrutural que afasta as juventudes da crença de que suas ações podem transformar realidades, inclusive no campo da cidadania. O sociólogo Charles Mills, já nos anos 1950, observava que as preocupações privadas, como manter o emprego, cuidar da família ou lidar com conflitos cotidianos, frequentemente nos deixam sem energia ou clareza para compreender as forças sociais mais amplas que moldam essas próprias dificuldades. Essa lógica, ainda presente, contribui para um ciclo em que a descrença no futuro se alimenta da falta de percepção sobre como esses desafios históricos afetam nossas vidas.

Para os jovens brasileiros, essa descrença é agravada por um contexto marcado por altos índices de desemprego, violência e desigualdade. Segundo o IBGE (PNAD Contínua, 2024), quase 10 milhões de jovens entre 15 e 29 anos estão fora da escola e do mercado de trabalho. Essa realidade, combinada à necessidade de fortalecimento e ampliação das políticas públicas de participação, reforça a sensação de impotência coletiva e individual.

Romper com essa visão fatalista exige mais do que oferecer “canais formais” de participação. Miraftab (2016) diferencia os “espaços convidados”, controlados e legitimados pelo Estado, dos “espaços inventados”, criados de forma autônoma pela própria sociedade. É nesses espaços insurgentes que as juventudes podem experimentar práticas de ruptura e criação, construindo formas de participação que colocam em prática direitos que muitas vezes ficam restritos ao papel.

Essa perspectiva também é defendida por Santos Jr. (2019), ao ressaltar que a participação territorial insurgente pode funcionar como laboratório vivo de alternativas societárias, rompendo com padrões de exclusão e experimentando novas formas de democracia cotidiana. Nesse contexto, as juventudes possuem uma vantagem estratégica: sua capacidade de articular múltiplas linguagens (culturais, digitais e comunitárias) para criar agendas próprias e ampliar a pressão social por mudanças.

Como lembra Helena Abramo (2005), a participação não é apenas um direito em si, mas também a porta de entrada para a formulação de todas as outras demandas sociais. Por isso, trabalhar com jovens para cultivar uma visão não fatalista significa estimulá-los a imaginar e criar futuros possíveis, combinando inovação, ação coletiva e práticas insurgentes que desafiem a lógica fatalista de que nada pode ser diferente do que já é.

Em outras palavras: superar a desconfiança no amanhã requer abrir espaço para que as juventudes não apenas participem do jogo democrático, mas reinventem suas regras, formatos e arenas, criando caminhos próprios para que a transformação seja possível.

Como estereótipos sobre jovens enfraquecem sua presença política

A descrença nas juventudes não é apenas uma postura individual ou uma opinião isolada, é um fenômeno histórico e estrutural que limita seu potencial de participação e, repetidas vezes, as retira da agenda pública. Quando não se acredita no protagonismo juvenil, reforça-se um ciclo em que jovens são vistos mais como parte do problema do que como parte da solução, o que ainda representa um desafio na formulação e implementação de políticas públicas eficazes e inclusivas para esse grupo social.

O Relatório Brasil: Pesquisas Sobre Juventudes no Brasil (2005) evidencia esse estigma. Ao comparar jovens e adultos, a percepção predominante entre os entrevistados foi pejorativa: jovens seriam menos responsáveis, mais consumistas, mais perigosos, mais violentos e menos trabalhadores. As únicas qualidades reconhecidas como superiores às dos adultos foram a criatividade e o idealismo (Abramo, 2005a). Essa visão não é recente: já nos anos 1990, Abramo (1997) apontava que a juventude era frequentemente tratada como “emblema dos problemas sociais” e não como sujeito de direitos e agente de transformação.

O peso desses rótulos é visível no cenário atual. Segundo pesquisa da Fundação Roberto Marinho e do Conselho Nacional de Juventude (2023), apenas 26% dos jovens sentem que suas opiniões são ouvidas por governantes e formuladores de políticas. Esse distanciamento desafia a consolidação democrática e reduz a disposição dos jovens para se engajar em causas coletivas.

Além disso, a estigmatização da juventude impacta diretamente sua presença nos espaços de decisão. Dados do Atlas das Juventudes (2021) mostram que a representação juvenil em conselhos, fóruns e instâncias participativas é baixa e concentrada em poucos grupos, deixando de fora a diversidade e a pluralidade da maior geração de jovens da história do país.

Superar esses “olhares que diminuem” requer mais do que campanhas de valorização simbólica. É preciso reconhecer a juventude como sujeito político, investir em formação cidadã, criar condições concretas de participação e ampliar o acesso a espaços de poder, sejam eles formais, como conselhos e conferências, ou informais, como coletivos, movimentos culturais e iniciativas comunitárias.

Quando a sociedade e o Estado passam a enxergar os jovens como parte da solução, abre-se espaço para que sua criatividade e idealismo se transformem em cidadania ativa, capaz de influenciar decisões e reverter as desigualdades que os afetam.

Educação para a cidadania, uma estratégia real para mudar vidas

Depois de apresentar esses três “tijolos” que sustentam as barreiras à cidadania ativa das juventudes brasileiras, é hora de falar sobre uma estratégia capaz de enfrentá-los de forma sistêmica: a educação para a cidadania.

Não se trata de inserir uma disciplina isolada no currículo dos jovens ou de um conteúdo esporádico em palestras. Falamos de uma prática viva, transversal e contextualizada que se manifesta dentro e fora da escola, em organizações sociais, espaços culturais, coletivos juvenis e iniciativas comunitárias. Uma abordagem que une conhecimento sobre direitos e deveres à vivência concreta da participação; que convida jovens a tomar decisões, exercer pensamento crítico e agir coletivamente para transformar seu entorno.

Essa é a chave para transformar a cidadania de conceito abstrato em ferramenta real de mudança. Quando um jovem diagnostica problemas, formula propostas, implementa ações e avalia resultados, ele não apenas aprende: ele se reconhece como cidadão, capaz de criar impacto. E quando isso se multiplica em rede, o efeito é de potência coletiva.

O Instituto Nelson Wilians (INW) atua exatamente nesse campo. Nossa metodologia própria combina formação cidadã, protagonismo juvenil e trabalho em rede. No Compartilhando Direito, por exemplo, jovens vivenciam um processo formativo que vai da compreensão de direitos à execução de atividades práticas em seus territórios. Ao lado disso, apoiamos educadores e organizações com assessoria técnica, materiais pedagógicos e monitoramento de resultados por meio de indicadores e instrumentais avaliativos como o Índice de Cidadania INW e os Termômetros de Aprendizagem.

Os resultados mostram que, quando os jovens têm acesso a conhecimento qualificado e oportunidade de colocar a mão na massa, a mudança acontece.

Acreditamos que a transformação social se constrói de forma colaborativa, com o Estado, com a sociedade civil e com as juventudes. É somando esforços que conseguimos promover cidadania ativa e oportunidades reais. O papel do Instituto é somar esforços, contribuindo com metodologias e experiências que fortalecem políticas públicas já existentes e ampliam a efetividade da cidadania.

Neste agosto, mês em que celebramos o Dia Mundial da Juventude e o aniversário do Estatuto da Juventude, nosso chamado é direto e inadiável:

  • Gestores públicos: ampliem e qualifiquem políticas de participação e garantam recursos para que jovens possam planejar e implementar soluções em seus territórios;
  • Educadores: capacitem-se para incentivar, dentro e fora da sala de aula, espaços de diálogo, escuta ativa e protagonismo, onde os jovens sejam incentivados a pensar criticamente, participar das decisões e transformar o conhecimento em ação cidadã;
  • Organizações sociais e escolas: invistam em iniciativas que unam formação cidadã a experiências concretas de ação, fortalecendo competências e oportunidades para que jovens transformem realidades locais;
  • Sociedade civil: atue como guardiã da democracia, promovendo e defendendo a participação plural e diversa, reconhecendo as juventudes como parte essencial da construção de um país mais justo e inclusivo.

Essa é uma agenda que exige urgência e compromisso de todos os setores. Cada ano em que adiamos o fortalecimento da cidadania das juventudes, perdemos vozes, ideias e soluções que poderiam estar transformando comunidades inteiras. Tirar as juventudes da prioridade do dia significa permitir que o desconhecimento, a descrença e os estigmas continuem moldando o presente e limitando o futuro. Investir nas juventudes agora é investir em um Brasil mais justo, plural e democrático, onde cada jovem saiba que sua voz importa, que seus direitos são reais e que sua ação tem poder para mudar realidades. O tempo de agir é hoje, e a construção desse caminho é uma responsabilidade coletiva.

Clara Gomes Freitas é Analista de Projetos Sociais Pl. do Instituto Nelson Wilians. Graduada em Ciências e Humanidades e em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC. Pós-graduanda em Políticas Públicas no Programa Avançado de Políticas Públicas do Insper. Pesquisadora da agenda de juventudes e participação social.

 

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