Publicado por Rafaela Lara, em 22 de junho de 2020, no Portal Jovem Pan Online
Com o isolamento social deixando milhares de pessoas dentro de suas casas para evitar a propagação do novo coronavírus, um antigo tema presente na sociedade volta a ganhar destaque pelo aumento de casos registrados: a violência doméstica. A quarentena tem sido apontada como um dos principais fatores para o aumento da violência contra a mulher nos últimos meses – apenas em São Paulo, a Polícia Militar registrou um aumento de 44,9% no atendimento a mulheres vítimas de violência em relação ao mesmo período do ano passado.
Foi a partir desta constatação, e da constante luta pelo fim desse tipo de violência, que a promotora Gabriela Manssur criou o JUSTICEIRAS, uma rede apoio às mulheres vítimas de violência que acaba de atingir a marca de mil atendimentos desde o início da quarentena. Com mais de 3 mil voluntárias, entre advogadas, psicólogas e assistentes sociais, a rede oferece informações e atendimento às mulheres que entrarem em contato através do número de WhatsApp: (11) 99639-1212.
“As mulheres sairão da quarentena, vão retomar suas atividades e trabalhos e, infelizmente, se não pedirem ajuda, continuarão no ciclo da violência. Temos alcançado um grande sucesso com esse projeto, que foi uma necessidade durante a quarentena, mas é um projeto que veio para ficar, tendo em vista o apoio e envolvimento da sociedade civil com o comprometimento em ajudar outras mulheres que estão em situação de violência. Com isso, podemos diminuir esse índice vergonhoso que o Brasil ocupa como quinto país com maior número de casos de feminicídio”, disse Gabriela em entrevista à Jovem Pan.
De acordo com o último levantamento do projeto, os atendimentos foram prestados em 23 estados e no Distrito Federal, e cerca de 50% das mulheres que entraram em contato nunca haviam pedido ajuda antes, mas já estavam em situação de violência, o que se agravou durante a quarentena. “Temos 49% de mulheres negras que pediram ajuda, 30% dessas mulheres não têm nenhum tipo de renda e dependem economicamente dos parceiros. Elas precisam estar nessa rede de proteção para que consigam viver livre de qualquer tipo de violência”, ressaltou a promotora.
Confira a seguir a entrevista com a promotora Gabriela Manssur:
Jovem Pan: A violência contra a mulher ganhou mais visibilidade com quarentena? Como estar em isolamento domiciliar pode agravar essa situação?
Gabriela Manssur: A visibilidade da violência contra a mulher fez surgir um novo sentimento nas brasileiras. Temos uma vontade muito grande de toda a sociedade de se envolver na luta, apoiar, orientar e acolher essas mulheres. Temos visto uma mobilização muito grande, todos se reinventando e fazendo com que as mulheres tenham mais acesso a informações. Toda a sociedade civil se mobilizou. Foram viabilizados acessos à Casa da Mulher Brasileira, prefeituras estão desenvolvendo projetos, como o auxilio hospedagem aqui em São Paulo, entre outras iniciativas do poder público e de setores privados também.
Acredito que estamos avançando, não no fim da violência contra a mulher, mas na prevenção e no combate a essa violência que está se alastrando durante a quarentena. E por quê estamos vendo esses pedidos de ajuda aumentando? Porque as mulheres estão convivendo 24 horas com aqueles homens que já tinham um comportamento agressivo e abusivo. Agora, soma-se isso a crise sanitária, política e econômica e acaba-se criando um fator que, muitas vezes, estimula esse comportamento violento e acarreta no aumento da violência contra a mulher que está dentro de casa. É importante que a mulher fale, assim ela terá ajuda, atendimento, proteção e fará com que se rompa o ciclo em que ela estava.
Como nasceu a rede Justiceiras e como pedir ajuda por meio desse projeto?
O projeto surgiu de uma necessidade de dar apoio, orientação, informações e acompanhamento a essas mulheres a partir do momento em que elas pedirem ajuda. Muitas vezes ela não sabe quais instrumentos de proteção existem à sua disposição, quais são os estabelecimentos que pode solicitar acolhimento, além de apoio psicológico e assistência social que vai disponibilizar políticas públicas para elas nas regiões em que elas vivem. Criamos esse canal de denúncia preocupadas com a situação das mulheres presas em casa e sem a possibilidade de pedir ajuda.
Para isso, foi necessário criar um canal de fácil acesso e criamos um número de WhatsApp para que essa mulher possa nos mandar uma mensagem e receber um formulário em seguida, que deverá ser preenchido e devolvido para que uma equipe de gestão possa encaminhar para as mulheres voluntárias inscritas e assim acompanhar essa mulher que veio até nós. Toda a sociedade brasileira pode se inscrever para se tornar uma voluntária Justiceira e dar apoio às mulheres vítimas de violência.
Como uma mulher pode oferecer ajuda às outras mulheres pela rede Justiceiras?
Atualmente temos 3 mil voluntárias entre psicólogas, assistentes sociais e advogadas, além da rede de apoio e acolhimento, formada por mulheres que já estiverem em situação de violência e superaram, que querem dar apoio a outras mulheres. As mil mulheres que já atendemos ao longo desses três meses foram encaminhadas para todas as frentes que elas necessitam. Temos alcançado um grande sucesso com esse projeto, que foi uma necessidade durante a quarentena, mas é um projeto que veio para ficar tendo em vista o apoio e envolvimento da sociedade civil com o comprometimento em ajudar outras mulheres que estão em situação de violência. Com isso, podemos diminuir esse índice vergonhoso que o Brasil ocupa como quinto país com maior número de casos de feminicídio.
O projeto diz: “Na quarentena, fique em casa, mas saia da violência doméstica”. O que faz com que uma mulher permaneça ao lado do seu agressor? Como reverter esse quadro na quarentena e também fora dela?
O primeiro aspecto que observo é quem é esse agressor. Não se trata de uma pessoa que a vítima não conhece, sempre é um homem, parceiro, companheiro, namorado ou ex-companheiro. Há um vínculo íntimo de afeto e, para isso ser rompido, é preciso coragem, atenção a essa mulher e, muitas vezes, o desligamento dessa dependência emocional e financeira também. São fatores que devem ser observados quando a mulher demora para pedir ajuda porque ela não quer romper esse relacionamento. Há muitas preocupações, os filhos, o medo de perder a guarda, de não conseguir dar conta de tudo sozinha, de que não acreditem na palavra dela, e ela acaba sem proteção.
Fica a sensação de impunidade no agressor e é isso que queremos evitar. Temos que mostrar para essas mulheres que a Justiça funciona, sim, e não deve haver essa sensação de impunidade. A mulher vítima de violência doméstica será apoiada, não apenas pelas Justiceiras, mas também por várias outras redes criadas e também por todo o sistema de Justiça que está preparado para receber essas denúncias.
O projeto deve continuar pós pandemia? Quais são os planos?
O projeto continua e estamos nos estruturando para isso. O Justiceiras não foi criado apenas para o período da quarentena, mas também para o futuro. As mulheres sairão da quarentena, vão retomar suas atividades e trabalhos e, infelizmente, se não pedirem ajuda continuarão no ciclo da violência. Nós, infelizmente, estamos aquém ainda da implementação de um serviço que possa ser eficiente para atender a demanda da violência contra a mulher, por isso precisamos envolver toda a sociedade civil e voluntariado, que hoje são mais de 3 mil mulheres, além das parcerias com empresas e poder público para que possamos ter condições de atender essa mulher com eficiência, rapidez e fazendo valer os direitos delas previstos na Constituição Federal.
O projeto continua porque é uma necessidade brasileira. No Justiceiras, nós fazemos o elo entre a mulher que sofre violência e toda a rede de proteção e enfrentamento à violência existente. Era algo que faltava e, agora que chegou, deve permanecer. Muitas parceiras prontamente se disponibilizaram e, por isso, conseguimos montar essa grande rede de apoio e voluntariado. É um projeto da sociedade civil. Nós demos as mãos, ainda que de forma virtual, para enfrentar essa pandemia dentro da pandemia, que é a violência contra a mulher.