A cidadania no Brasil sempre foi um projeto em construção. Embora a Constituição de 1988 a consagre como um dos fundamentos da República, sua efetivação ainda é desigual, seletiva e, por vezes, simbólica. Em um país de dimensões continentais, com profundas diferenças sociais, raciais, econômicas e territoriais, garantir direitos exige mais do que leis. É necessário também desenvolver políticas que reconheçam as múltiplas realidades da população.
Território ainda define o acesso a direitos
As desigualdades regionais são um exemplo claro dessa fragmentação. De acordo com o IBGE (2023), o Sudeste concentra 53% do PIB nacional. Em contrapartida, regiões como o Norte e o Nordeste enfrentam baixos índices de saneamento, educação precária e serviços de saúde limitados. Por isso, o local de nascimento ainda determina o acesso a direitos básicos para milhões de brasileiros.
A exclusão racial compromete a cidadania
Além das desigualdades territoriais, a dimensão racial aprofunda esse cenário. Pretos e pardos representam 56,1% da população (IBGE, 2022). No entanto, continuam sendo os mais impactados pela pobreza, violência e falta de oportunidades. Por exemplo, o Atlas da Violência 2023 mostra que 77% das vítimas de homicídio no país são negras. Além disso, apenas 19% dos estudantes negros acessam o ensino superior. Isso demonstra um ciclo de exclusão que começa na infância e se perpetua na vida adulta.
Mulheres seguem privadas de direitos básicos
Quando analisamos a desigualdade de gênero, os números também são alarmantes. As mulheres recebem, em média, 78% do salário dos homens. Para mulheres negras, o rendimento equivale a apenas 58% do valor recebido por homens brancos (IBGE, 2023). Além disso, o número de feminicídios cresceu 6,1% em 2024, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados deixam claro que muitas mulheres ainda não têm assegurados direitos fundamentais, como a vida e a segurança.
Informar é parte do direito à cidadania
Cidadania também envolve acesso à informação, autonomia e participação política. Contudo, 40% da população adulta brasileira apresenta níveis insuficientes de letramento funcional (INAF, 2023). Essa limitação, somada à exclusão digital agravada pela pandemia, compromete a capacidade de milhões de pessoas exercerem seus direitos com plenitude. Assim, o déficit informacional torna-se uma barreira invisível, porém muito real.
Equidade como princípio de reconstrução
Diante desse cenário, é necessário repensar o modelo atual de cidadania. Não se pode tratar desiguais como iguais. A cidadania plural exige políticas públicas baseadas na equidade, não apenas na igualdade formal. Para isso, é essencial reconhecer como marcadores sociais — como raça, gênero, classe e território — se sobrepõem e se reforçam mutuamente.
Como exemplo positivo, o SUS, por meio da Estratégia Saúde da Família, levou atendimento a comunidades vulneráveis. Da mesma forma, o programa Bolsa Família, agora reestruturado, representa uma tentativa de atender as famílias em situação de pobreza. No entanto, essas iniciativas precisam ser acompanhadas de políticas estruturantes, como reforma tributária, educação pública de qualidade e acesso à moradia digna.
Representatividade importa. E muito
Outro ponto crucial é a representatividade nos espaços de decisão. A baixa presença de negros, mulheres, indígenas e pessoas LGBTQIAPN+ compromete a legitimidade das políticas públicas. Iniciativas como cotas raciais e de gênero em partidos e concursos são importantes. Entretanto, por si só, não são suficientes para enfrentar as estruturas excludentes consolidadas historicamente.
Sociedade civil como pilar da transformação
Felizmente, a sociedade civil vem cumprindo um papel estratégico. Organizações comunitárias, redes locais e espaços educativos não formais contribuem para dar voz às populações invisibilizadas. Esses agentes, portanto, são fundamentais para criar soluções inovadoras e inclusivas que dialoguem com a realidade de cada território.
Cidadania é construção contínua
Garantir cidadania no Brasil é reconhecer que ela não nasce pronta. Pelo contrário, é um processo contínuo, moldado pela escuta, pela diversidade e pela ação coletiva. Um projeto de país verdadeiramente democrático deve valorizar todas as vozes. Afinal, existem muitos perfis de Brasil coexistindo — e todos eles merecem vez, voz e direito.
